quinta-feira, 13 de novembro de 2008
terça-feira, 11 de novembro de 2008
quinta-feira, 6 de novembro de 2008
Até a vitória
Lembro do tempo das vacas magras. Não que agora elas estejam muito gordas, mas já foram beem magrinhas. Eu perambulava entre lançamentos e novidades em uma livraria no centro de Salvador. Recordo-me, em especial, de dois livros. Um era denominado “Cuba por Korda”. Neste, o autor, Alberto Korda, fotógrafo publicitário, acompanhou Fidel, Raúl, Cienfuegos, Guevara e compahia, nas montanhas da Sierra Maestra, durante a revolução cubana. Outro, “O Dicionário do Pensamento Marxista”, uma coletânea contendo autores, terminologias e teorias dessa corrente do pensamento que, pra minha sorte ou azar, abracei. Folheei, folheei, folheei mais um pouquinho. Se o governo cubano e o marxismo eram (ou são) caminhos para a humanidade, isso eu nunca soube dizer. Mas, de uma coisa eu estava certo: dinheiro que era bom eu não tinha para comprar os benditos livros. O tempo passou e, utilizando uma acepção (bela palavra, não?) marxista, eu diria que as condições materiais em que eu vivia sofreram profundas alterações. E eis que, algum tempo depois, lá estava eu de volta, com din-din no bolso e a ideologia demodê dos “combativos companheiros” na cabeça. Os livros, estes não mais estavam nas prateleiras. Porém, Hei de encontrá-los, pero sin perder la ternura jamás.
segunda-feira, 3 de novembro de 2008
O encontro de Leidiane e Capitu em Piatã
Perto da minha casa reside o lendário seresteiro Júlio Nascimento, que, na minha singela opinião, é o melhor cantor de música brega do Brasil. Suas músicas falam sobre garimpeiros traídos, mulheres ingratas, cabarés, prostitutas, cachaça e todos os elementos que compõem o imaginário corno nacional. Outro dia sonhei que encontrava, em frente à casa do Júlio, ninguém menos que o aclamado Joaquim Maria Machado de Assis, fundador da Academia Brasileira de Letras e influência presente nos meus textos. Lá estava eu, emocionado, apertando a mão do “Bruxo do Cosme Velho”, como é conhecido. Qual a relação entre Júlio e Machado? Acredito que nenhuma. Mas essa é a graça do subconsciente: tornar possível o impossível. Subverter a realidade. Quiçá seja essa uma das funções da arte. Fazer-nos sonhar para além das fórmulas matemáticas.
segunda-feira, 27 de outubro de 2008
Roque
Ainda há pouco conversei com um amigo aqui no trabalho. Assistíamos, no youtube, à performance de uma banda chamada “A Casa das Máquinas”, um rockão setentista. O vocalista se requebrava, usando calças apertadas, batom e uma bota feminina à La Gene Simons, vocalista do Kiss. E o meu colega, que já passou da casa dos quarenta, lembrou que, há algum tempo, o rock enfrentava muito preconceito. Recordo-me de um empregado do meu avô, em nossa casa de praia, colocando uma fita cassete em que um pastor evangélico associava o surgimento do rock a casos de possessão demoníaca, o popular diabo no corpo. Eu tinha 11 anos, achei muita graça e continuei ouvindo meu rock’n’roll. Um pouco mais tarde, minhas roupas 100% pretas, que nada tinham a ver com movimentos de afirmação da negritude, não eram muito bem vistas por meu pai. E na terra do Axé, na década de 90, era no mínimo estranho ouvir heavy metal. Hoje tenho o dobro da idade da época, e muita coisa mudou. Há um maior espaço na mídia baiana para manifestações que estão além da tríade Chiclete-Asa-Ivete. Agora, em show de rock tem até mulher bonita – inclusive, minha banda gravou uma música intitulada “Em show de rock não tem mulher, só tem menina problemática”. Para minha felicidade, eu estava errado. Mas, pessoal, o Roque não é nada de mais. É só o ajudante do Silvio Santos.
terça-feira, 21 de outubro de 2008
Granola
Hoje abri um livro do Fernando Pessoa, “Poemas de Alberto Caeiro”. Notei que havia um pedaço de granola grudado à página, resquícios da trilha que fiz no final do ano passado, em algum lugar do lendário Vale do Capão. Na página em que resistia, heróica, a granola, existe um poema em que Pessoa - ou seria o Caeiro? – divaga sobre a inexistência do passado, presente ou futuro. Para o poeta, o que existe é a realidade. E foi assim que me lembrei do passado no Capão e projetei o futuro n’outro recanto do gênero.
quinta-feira, 16 de outubro de 2008
Fragmentos de um sonho em 30 segundos.
- Odeio dizer adeus!
Exclamou Maria, dobrando a esquina sem olhar pra trás.
Exclamou Maria, dobrando a esquina sem olhar pra trás.
segunda-feira, 13 de outubro de 2008
O encontro de Toinho Silva co’a moça bunita do laço de fita em Rio de Contas.
O céu riscado, azul, vermelho e violeta, nunciava o raiá do dia, n’algum lugá serrano, no interiô da minha Bahia. Pássaros, frio penetrando os ossos, e uma cabloca de cabelo preto sorrindo um riso que é dela e nosso. Uma vez escrevi, certa poesia, que dizia ser o riso dela, sonho bom em noite fria, quando eu recostava só, em alguma rodovia. Mas o dia principiava, e ela teve que partir, ao som da revoada, da passarada daqui, e eu, sem dizer nada, sinto a atmosfera perfumada, e a natureza a sorrir.
terça-feira, 7 de outubro de 2008
A peleja entre Descartes e Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa.
- Caeiro, você precisa parar pra pensar.
- Ora, meu caro, eu quero mesmo é parar. De pensar.
- Ora, meu caro, eu quero mesmo é parar. De pensar.
segunda-feira, 6 de outubro de 2008
Expediente
16:40. Saio da frente do computador e vou dar um rolé. No corredor da empresa, encontro um colega que se dirigi à área externa pra fumar. Resolvo pegar a o elevador e assistir ao cair da tarde no saguão do prédio. Passo pela recepção. Lá embaixo, percebo, ao longe, um coqueiro inédito, nunca percorrido por minhas retinas. Um táxi pára, de onde surgi uma beldade, ao passo que sinto o vento, as cores, os azulejos da parede, o assobio e as folhas tremendo no ar. Recordo-me de um ano atrás, quando eu andava dividido entre um estágio na área jurídica e um emprego no departamento de criação em uma agência de propaganda. Sento no mesmo banco da época, porém meu celular não é mais o mesmo. Volto pro trabalho e escrevo uma crônica. Ou seria um conto?
quinta-feira, 2 de outubro de 2008
Igreja
Hoje cedo passei em frente a uma igreja que fica lá na faculdade. O cheiro que emanava daquele templo semi-iluminado me levou a tempos remotos, lá na velha infância, quando eu estudava em um tradicional colégio de freiras. Minha mãe bem que tentou, mas, durante um encontro preparatório para a 1ª comunhão, um coleguinha confessou que gostava muito de uma música dos Titãs, “Igreja”. “Eu não gosto de padre/ eu não gosto de madre/ eu não gosto de frei”, cantarolou o pequeno herege no auge dos seus dez anos. Eu também gostava dos Titãs. Algum tempo depois, durante uma aula de filosofia, fiquei muito interessado por dois filósofos, por assim dizer, não muito beatos: Nietzsche e Marx. Caíram como bombas na minha cabeça. Tínhamos aulas de filosofia num outro colégio católico onde estudei, mas estudávamos, tão-somente, pontos de vista teológicos que embasaram o cristianismo, como os de Aristóteles e Platão. Não nos foi dado o direito de conhecer os iconoclastas, os bad boys da filosofia. Aquele coleguinha que não gostava de padre, hoje aos 27 anos, converteu-se ao Islã. E eu, após um período ateu marxista semi-ortodoxo, acredito que exista algo, mas não da forma que me ensinaram. E o que seria esse “algo”? Eis a questão.
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
1975
Sala escura. Não dormi bem. Ontem deram uma batida lá em casa. Enterrei os livros no quintal, mas um descuido foi o suficiente para eu ir parar no quartel do exército em Amaralina: os milicos acharam, dentro de uma caixa de sapatos, “A Acumulação Primitiva do Capital”, escrito por Karl Marx. Ainda bem que já mandei minha mulher e filha pra casa de mamãe, no interior. Passei a madrugada numa jaulinha onde mal cabia um cachorro. Tô todo quebrado. Ainda não me torturaram com pancadas. Os jornais dizem que a tortura não existe, mas eu sei que é mentira. Ouço passos. Alguém chega perto da sala escura onde estou. A maçaneta gira. Acho que entrei em pânico.
quarta-feira, 24 de setembro de 2008
Impressões
Eu corria, corria, mas não transpirava. A voz dela ecoava, saindo de alto falantes e buzinas de carros desgovernados. Ela dizia, “Lúcio, eu não me sinto preparada pra isso”, e os ônibus traziam, em seus letreiros, essa frase, e os outdoors estampavam aqueles olhos claros e miúdos que, na penumbra, tentavam se esconder sob uma franja castanha.
segunda-feira, 22 de setembro de 2008
Afrodite’s
Moro num bairro tradicional. Sou de uma família igualmente tradicional e cursei uma faculdade no intuito de manter a tradição da família, a loja de confecções que vovô abriu assim que chegou de Portugal. Mas o meu faro de administrador apontava para outra direção. Um dia, perto de atingir o clímax numa sala de espelhos, tive uma grande sacada: a loja de confecções do vovô cuidava da aparência das pessoas. As distintas senhoras da Graça e Ladeira da Barra figuravam na coluna social, ostentando os nossos tecidos. Mas essas distintas senhoras tinham filhas igualmente distintas, que não esperavam mais até o casamento para, assim como eu, deliciarem-se em uma sala de espelhos. E, nos bairros tradicionais, não seria possível abrir motéis, ainda que houvesse uma demanda reprimida para tanto.
– Vem cá, menino, no que é que você tá pensando? – Perguntou Roberta enquanto eu refletia com a mão no queixo.
– Afrodite’s, na Avenida Paralela, heheh.
– É o quê, Marcelo? Você é muito doido, viu?
E assim, tive a idéia e montei o empreendimento que me trouxe dinheiro, status e uma esposa nascida em uma família tradicional, digna da coluna social.
– Vem cá, menino, no que é que você tá pensando? – Perguntou Roberta enquanto eu refletia com a mão no queixo.
– Afrodite’s, na Avenida Paralela, heheh.
– É o quê, Marcelo? Você é muito doido, viu?
E assim, tive a idéia e montei o empreendimento que me trouxe dinheiro, status e uma esposa nascida em uma família tradicional, digna da coluna social.
quarta-feira, 17 de setembro de 2008
Meu pai me advertiu severamente: existia um lugar, perto lá de casa, onde havia uma corda suspensa, tipo um cipó, com a qual alguns adolescentes oscilavam de um lado a outro, sobre um abismo multicolorido, em tons de vermelho e amarelo. Ele dizia, “meu filho, muitos garotos nunca mais voltaram”. As histórias que me contavam sobre a corda suspensa eram as mais aterradoras possíveis, o que só atiçava a minha curiosidade, “será que é tão ruim assim? Pensei. E fui lá conferir. Depois, eu e meus amigos começamos a oscilar sobre o abismo com uma certa freqüência, e confesso que nos orgulhávamos da nossa coragem. Apesar de ouvirmos as pessoas dizendo que a corda era coisa de pessoas vazias, sem personalidade, que precisavam de subterfúgios para viver, sabíamos que já éramos (será?) homens o suficiente para transgredir regras básicas de convivência.
segunda-feira, 15 de setembro de 2008
segunda-feira, 8 de setembro de 2008
Eu e Eu
Ontem tive um encontro inusitado: tomei uma cerveja, literalmente uma, num boteco no centro de Salvador. O meu quase companheiro de copo, digo quase porque não tive condições de acompanhá-lo devidamente, era eu mesmo, dez anos mais novo. Sim, marquei um encontro com meu eu, aquele que vive entre 1997 e 98. Uma espécie de acerto de contas.
- E aí, vai na breja? Perguntou o garoto de 16 anos.
- É, uma só.
- Você tem um isqueiro aí?
- Não. Há anos que não toco num cigarro.
- Heheh, um dia eu chego lá.
- Mais cedo do que você imagina.
Ele serviu a cerveja e conseguiu um fósforo com o dono do bar. Soprou a fumaça e me olhou com um leve sorriso. Perguntei como ele ia na escola.
- Haha, já num sabe...
- Bom, escola é aquilo mesmo. Ela é um sistema hermético, que apresenta um discurso linear. Então, se algumas pessoas, como você, não se adaptam ao esquema “decore ou perca”, a escola não vai admitir que pode haver falhas nos programas... No ensino. É mais fácil jogar a bomba no seu colo e dizer que você é o garoto-problema.
- Não entendi.
- E nem vai entender. Tudo a seu tempo, meu caro.
Nesse ínterim, neguei o terceiro copo, sendo alvo de risos do meu amigo, que pediu outra ao garçom e continuou bebendo sozinho. Acendeu o segundo cigarro.
“Eu soube que você tem uma banda”, falei.
- Pois é. Mas saí. Tiro nota baixa, queimo filme em alta, hehe, se eu ainda arrumar uma banda....
- Seu pai tem um treco.
- Hahah, isso aí.
Emendei:
- Fazer rock, em Salvador, em 1998, é antes de mais nada uma atitude política. A indústria do turismo e do entretenimento ganha com o monopólio do axé. Essa baianidade suada, do negão subindo a ladeira, é metade real e metade inventada. Fazer rock no momento que você vive é remar contra a maré. O problema não é o axé ou o pagode em si. O problema é a monocultura. A Bahia é muito mais do que isso.
“Rapaz”, disse o garoto, você fala bonito, hein?
- Hehe, você também, quando quer. Eu soube até que tu escreve umas coisinhas.
- Ah, nada de mais.
- Bom, acho que você deve continuar a escrever. Mas, nada de falar difícil. Escreva pra ser entendido. Pra ser lido por muito mais que meia dúzia de intelectuais goguentos.
- Hehe, deu a idéia!
- Pois é. Agora tenho que ir. Vou dar uma estudada ainda hoje.
- Falou, Joe! Vou nessa também.
Paguei a conta. Despedimo- nos com um abraço fraterno e a certeza de que haveria um segundo encontro.
- E aí, vai na breja? Perguntou o garoto de 16 anos.
- É, uma só.
- Você tem um isqueiro aí?
- Não. Há anos que não toco num cigarro.
- Heheh, um dia eu chego lá.
- Mais cedo do que você imagina.
Ele serviu a cerveja e conseguiu um fósforo com o dono do bar. Soprou a fumaça e me olhou com um leve sorriso. Perguntei como ele ia na escola.
- Haha, já num sabe...
- Bom, escola é aquilo mesmo. Ela é um sistema hermético, que apresenta um discurso linear. Então, se algumas pessoas, como você, não se adaptam ao esquema “decore ou perca”, a escola não vai admitir que pode haver falhas nos programas... No ensino. É mais fácil jogar a bomba no seu colo e dizer que você é o garoto-problema.
- Não entendi.
- E nem vai entender. Tudo a seu tempo, meu caro.
Nesse ínterim, neguei o terceiro copo, sendo alvo de risos do meu amigo, que pediu outra ao garçom e continuou bebendo sozinho. Acendeu o segundo cigarro.
“Eu soube que você tem uma banda”, falei.
- Pois é. Mas saí. Tiro nota baixa, queimo filme em alta, hehe, se eu ainda arrumar uma banda....
- Seu pai tem um treco.
- Hahah, isso aí.
Emendei:
- Fazer rock, em Salvador, em 1998, é antes de mais nada uma atitude política. A indústria do turismo e do entretenimento ganha com o monopólio do axé. Essa baianidade suada, do negão subindo a ladeira, é metade real e metade inventada. Fazer rock no momento que você vive é remar contra a maré. O problema não é o axé ou o pagode em si. O problema é a monocultura. A Bahia é muito mais do que isso.
“Rapaz”, disse o garoto, você fala bonito, hein?
- Hehe, você também, quando quer. Eu soube até que tu escreve umas coisinhas.
- Ah, nada de mais.
- Bom, acho que você deve continuar a escrever. Mas, nada de falar difícil. Escreva pra ser entendido. Pra ser lido por muito mais que meia dúzia de intelectuais goguentos.
- Hehe, deu a idéia!
- Pois é. Agora tenho que ir. Vou dar uma estudada ainda hoje.
- Falou, Joe! Vou nessa também.
Paguei a conta. Despedimo- nos com um abraço fraterno e a certeza de que haveria um segundo encontro.
quarta-feira, 3 de setembro de 2008
Retirantes
Recordo-me de uma família de retirantes, em frente à igreja de Santana, no Rio Vermelho. Seriam mesmo retirantes, como naquela tela de Portinari, foragidos da seca, ou eram os posteriormente denominados “sem-teto”? Não importa. Existem retirantes que nunca saíram do lugar. Retirados daquilo que gostam; aquele que, por razões de sobrevivência, abdica do seu sonho, se torna um retirante. Às vezes, quando um sonho se perde no dia a dia, tornamo-nos exilados. Olhamos, de longe, as terras por onde caminhamos no passado. Até que venha a anistia, ou a chuva, e possamos, enfim, retornar.
segunda-feira, 1 de setembro de 2008
Caruru
A festa de Cosme e Damião, ocasião farta em doces, caruru, vatapá e pipoca, é também alvo de evangélicos ressentidos com a baianidade nagô. Vale lembrar que muitos missionários do senhor participaram ativamente desse e de outros festejos, quando ainda faziam parte “do mundo” – sim, após a conversão, passaram a ser “criaturas de Deus”. Mas não é sobre isso que vamos tratar aqui. Num jantar dedicado aos santos gêmeos, notei que os convidados presentes na sala de estar e na varanda, em volta da piscina, não eram tão pretos quanto aqueles sentados, com seus respectivos pratos, na área de serviço. Mas essa divisão, tão clara quanto escura, não foi uma escolha deliberada dos donos da casa. A sociedade soteropolitana foi estruturada, ao longo dos séculos, dessa maneira. Até aqui, nenhuma novidade.
quarta-feira, 27 de agosto de 2008
Sobre cães e papagaios
Nós, humanos, gostamos de cães e papagaios. Cachorros ficam, via de regra, a abanar o rabo, sem jamais questionar a nossa autoridade. Papagaios nos divertem. Eles têm um nível lingüístico desenvolvido o suficiente para repetir algumas palavras ditas por nós. Papagaios e cachorros inspiram segurança. Vivemos em diversos espaços sociais – família, trabalho, escola ou faculdade – onde, como em qualquer lugar, existem regras. Até mesmo os grupos formados por animais têm suas regras, e a natureza, suas leis. Mas, se a condição do ser é o vir a ser, como foi dito na Grécia antiga, questionamentos à ordem vigente, seja em casa, no trabalho ou na sociedade, são inevitáveis. E isso é o que diferencia homens de cachorros. E papagaios.
segunda-feira, 25 de agosto de 2008
Na terra de ia iá
Na velha Bahia, de Caetano e Jorge Amado, o atendimento de muitos bares e restaurantes em nada lembra a alegria das solícitas baianas de acarajé que ilustram os comerciais veiculados em outros estados. Em Salvador, o largo sorriso branco estampado em uma face nagô provavelmente foi embora, junto com a paciência de ia-iá e iô-iô, em algum ponto de ônibus, após longos minutos de espera.
quarta-feira, 20 de agosto de 2008
O humorista
Mais gasta que as piadas manjadas do humorista, com seus cansativos números envolvendo bêbados e gays, só as solas surradas dos seus sapatos, carcomidas de tanto andar pelas ruas da velha Bahia atrás de um reconhecimento que nunca chegou.
segunda-feira, 18 de agosto de 2008
Lei Seca
Despontamos, eu e Clara, na entrada do restaurante. Um garçom de avental nos espreitava, com um pequeno menu à mão. Dirigiu-se a nós e, sem nos olhar, murmurou um “boa noite, senhor”, quase imperceptível. Sentamo-nos à mesa. Estávamos sem fome e, em tempos de Lei Seca, não me sinto à vontade para entornar o caneco. Portanto, pedimos uma singela jarra com água de côco. Meia hora havia se passado e nenhum pedido novo. Clara levantou, distraída, o braço esquerdo, e o garçom se precipitou, suando, em nossa direção. Alarme falso. Nenhum pedido. Visivelmente contrariado, retornou, resignado, ao seu posto. Haja vista o movimento inquieto das pernas de Clara, que insistentemente bulinavam as minhas sobre a mesa, decidi pedir a conta. O garçom a trouxe, trêmulo. E, revoltado com o nosso parco consumo, sacou uma faca de cozinha, rasgando em cheio a minha jugular.
terça-feira, 12 de agosto de 2008
The new Wind, ou os novos ventos
A partir de hoje, José, porteiro do Salvador Manhattam Square, foi rebatizado para Joseph, lembrando que o “ph” tem som de f. O caboclo, natural de Acupe, no recôncavo baiano, foi instruído a saldar the ladies and gentleman com um sonoro “good morning”, lembrando ao leitor que o “r” do morning deve ser pronunciado com sotaque paulista. Afinal, o “r”, in english, tem som de “are”. A comunicação dos novos empreendimentos (desculpem a ignorância, mas não sei como se diz empreendimento em inglês), seguem a mesma linha: uma celebridade, do momento ou não, tenta nos seduzir com um discurso cuja retórica gira em torno das mesmas palavras: “perto de tudo”, “praticidade”, “conforto”, “requinte e bem-estar”. E na terra do “tome obra”, tome-lhe kid’s club, home theatre, shopping mall, and many other expressions in English. Certa feita, no Jornal Atarde, foi veiculada uma matéria sobre o abandono da cidade baixa. Adivinhem onde estava matéria? Espremida por um grande anúncio publicitário que trazia mais um empreendimento imobiliário na terra de obalu-aiê. E como já dizia José Simão, “mais direto impossível”.
sexta-feira, 8 de agosto de 2008
Muro branco
Eu não costumo pular muros. Afinal, em tempos de violência extrema, posso ser confundido com um meliante e tomar uns tiros. Mas eu não pulei aquele muro. Peguei um impulso e voei, com direito a batida de “asas” e o cambau. Quando pousei no chão, cumprimentei o porteiro (moral), e segui em direção ao apartamento de Catarina. Tomei um susto. O apartamento estava revirado, de portas abertas e havia pessoas lá dentro, futuros inquilinos. A proprietária se dirigiu a mim e disse “meu filho, sua namorada andava muito esquisita, chorando pelos cantos, sei não, ói, num quero nem me estressar, viu!”
Fiquei parado por, não sei, alguns minutos. Caminhei até a saída e vi dezenas de bonecas chorando sangue. Peguei uma e estanquei, olhando aquela figura macabra por mais alguns minutos. Era dia claro. Mas não importava a direção que eu fosse. Ao olhar pra cima, nuvens escuras de uma noite sem estrelas me acompanhavam.
Fiquei parado por, não sei, alguns minutos. Caminhei até a saída e vi dezenas de bonecas chorando sangue. Peguei uma e estanquei, olhando aquela figura macabra por mais alguns minutos. Era dia claro. Mas não importava a direção que eu fosse. Ao olhar pra cima, nuvens escuras de uma noite sem estrelas me acompanhavam.
terça-feira, 5 de agosto de 2008
O preço
No alto da Serra do Candombá, na Chapada Diamantina, encontrei um ancião dread locker de cabelos brancos. Para o meu espanto, ele trazia pendurado, na ponta do nariz, um colorido rabo de camaleão. Sacou, de sua longa bata azul, uma torneira. Abriu-a, de onde saíram estrelas que preencheram o céu até então claro de uma manhã sem nuvens. Abateu-se a noite. E o velho me perguntou, “meu filho, você está disposto a pagar o preço da irreverência?”, no que respondi, “ah, me dá aí o boleto que eu pago no caixa rápido, sem fila”.
quinta-feira, 31 de julho de 2008
Foliões terceiro-mundistas e o Bloco Europeu.
Retirantes transnacionais locomovem-se em grandes centros urbanos. Nestes, dirigentes estatais exigem, através de leis, a supressão da cultura originária dos imigrantes. Enquanto isso, Mohamed presenteia Silvia com um lindo colar de brilhantes. Motivo: Silvia, brasileira que trabalha num café em Londres, foi a única pessoa, durante o ano de 2007, que lhe dirigiu a palavra.
Eu – caristia.
Hoje na aula de catequese a pró desenhou dois coração o coração do justo e o do pecador, aí o do justo era todo limpinho, e ela disse que era o coração da loirinha que eu sou afim. E o do pecador? Ah, no do pecador ela fez um mucado de pontinho preto, sei não, eu apronto muito, acho que não vou pro céu.
Festa de aniversário
A festa tava animada. Muita gente veio me dar um abraço. Era meu aniversário. Teve uma hora que eu vi um cara, com um bigodinho, que trazia um embrulho nas mãos. Gelei. Eu sabia o que tinha ali dentro. Quando eu era pequena, lá na roça, papai obrigava a gente a carregar lenha pra botar no fogão. De vez em quando, vinha uma aranha bem grande, aí eu jogava as lenha fora e saía correndo, chorando. Por isso, eu sabia que o cara do bigodinho trazia um monte de aranha naquela caixa. Gelei. Ele me olhava. E sorria.
Eu comecei a suar frio, tentei correr, sei lá, me trancar no banheiro. Mas as minhas pernas não me obedeciam, como num pesadelo. Ele foi chegando perto e eu soltei um grito estridente, medonho. Ninguém me ouviu. Ele abriu a caixa, de onde saíam minúsculas aranhas caranguejeiras, pretas, peludas, de olhos miúdos. Depois eu não sei, já acordei com meu namorado do meu lado, pálido, segurando minha mão.
Eu comecei a suar frio, tentei correr, sei lá, me trancar no banheiro. Mas as minhas pernas não me obedeciam, como num pesadelo. Ele foi chegando perto e eu soltei um grito estridente, medonho. Ninguém me ouviu. Ele abriu a caixa, de onde saíam minúsculas aranhas caranguejeiras, pretas, peludas, de olhos miúdos. Depois eu não sei, já acordei com meu namorado do meu lado, pálido, segurando minha mão.
Helena
Lembro da aula de Filosofia. A professora falava que Platão dividiu a existência humana em dois planos, o real (ou material), e o ideal. No plano real, Helena era casada com Silvio, e a ele devia, dentre outras coisas, fidelidade. No plano ideal, esse sim, havia planícies desertas, verdes ou áridas, não importa, mas reinava a liberdade por aquelas paragens. E não havia Silvio, sim possibilidades.
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